Texto – A guerra de Canudos – Nordeste Sangrento – por Abílio Neto

O escritor húngaro Sándor Márai, autor de VEREDICTO EM CANUDOS, é para mim, até hoje, a pessoa que mais entendeu o grande livro de Euclides da Cunha, OS SERTÕES. Li esse livro a primeira vez quando ginasiano e confesso que o português castiço e profundo do autor me chocou e até me provocou um sentimento de inferioridade: que eu jamais chegaria até aquele nível de intelectualidade como de fato não cheguei. Nem chegarei. Naquele tempo, ainda moleque, eu nunca entendi porque o Exército brasileiro teve necessidade de matar milhares de pessoas (número que conforme alguns autores varia entre seis a vinte mil pessoas). O que aquele povo de Canudos tinha de tão ruim, tão repugnante como seres humanos? O Exército brasileiro matando brasileiros para o bem do Brasil? Isso nunca me cheirou bem!

Voltei a ler o livro já bem mais adulto, depois da minha união com Elizabeth. E por uma razão bem fundamentada: a avó dela, dona Izabel Maria da Conceição, era uma sobrevivente de Canudos. Em 1897, aos 10 anos, já no fim da guerra, seus pais mandaram que ela corresse em disparada pelo sertão baiano para escapar das balas dos canhões que destruíram o arraial de Canudos (que tinha mais de 5.200 casas), e também da degola dos soldados da jovem república que não poupavam nem as mulheres e as crianças que se entregavam. Os adeptos de Antônio Conselheiro, incultos, mas profundamente religiosos, foram obrigados a matar para defender suas casas, suas duas igrejas, suas famílias e as vidas deles próprios.

Eu tive a graça e o prazer de conhecer essa sobrevivente, avó de Elizabeth, em Sobradinho. Uma pessoa alegre, simpática e muito elevada espiritualmente. Pedi até a uma filha dela, uma educadora chamada Ana, que escrevesse um livro sobre Canudos, tendo a própria mãe como narradora. Passou-se o tempo e dona Izabel faleceu e levou com ela parte da verdadeira história de Canudos.

Não quero com isso dizer que o livro de Euclides da Cunha seja mentiroso. Não é bem isso. A segunda vez que li o livro, minha visão crítica sobre a narrativa dele estava muito mais apurada. Sim, Euclides era um verdadeiro cientista natural. Provou isso logo na 1ª edição do livro, que é de 1902, na parte “A Terra”. Na terceira parte “A Luta”, seu trabalho jornalístico peca pela parcialidade, sobretudo os estudos que fez sobre Antônio Conselheiro e seus adeptos. Canudos tem relação direta com o 13 de maio de 1988. Mesmo assim, seu grande livro é essencial para a compreensão da história do Brasil.

É inegável que Euclides foi influenciado pelas teorias deterministas então dominantes e o que mais chama a atenção é que sempre se colocou ao lado da parte mais forte naquela guerra sem sentido: o exército de Caxias. Isso porque, no livro, Euclides já havia feito uma espécie de revisionismo sobre aqueles artigos contundentes que escreveu para o jornal “O Estado de São Paulo”, chamados “Diário de uma expedição”. Como correspondente de guerra, ele não passou nem um mês no sertão baiano. Entre o final da guerra, em 05/10/1897, e 1902, quando lançou o livro, estudou muito o sertão, todavia o mesmo não se pode dizer sobre o fenômeno de Canudos em sua motivação de origem. Sertanejo não é nem nunca foi sinônimo de jagunço. Além disso, se posicionou claramente contra a mistura de raças!

Voltando ao livro “Veredicto em Canudos”, seu autor chegou ao final da leitura de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, entre exausto e intrigado, porém fascinado pela história do combate entre as forças republicanas e os seguidores de Antônio Conselheiro, chamados de inimigos da república e desordeiros e assim decidiu escrever sobre o que ele acreditava ter ficado de fora do livro euclidiano. Deste modo, produziu um romance que é como se fosse uma história viva bem recontada do fim para o começo. Como ele mesmo declarou depois de ter lido “Os Sertões”, parecia ter estado no Brasil de 1896/1897. “Veredicto em Canudos”, se mostrou um livro tão impressionante para mim, que o li ao cabo de três dias. Escrito por Sándor Márai no final dos anos 60, a partir da leitura da tradução inglesa de “Os Sertões”, o livro foi publicado em húngaro, por um editor canadense, em 1970.

Eu saúdo esse escritor porque ele, no seu ímpeto criativo, nos alerta para aquilo que tanta gente não entendeu, fez vista grossa ou penetrou em veredas e se perdeu no caminho que levava ao vale de Canudos. É Euclides da Cunha passado a limpo, acho eu. Aquela história de que “o sertanejo é antes de tudo um forte” é conversa para boi dormir porque veja o tamanho do entretanto que vem logo a seguir.

Antônio Conselheiro mandava seu povo plantar, colher, comercializar, ser manso de coração e rezar. Os conselhos que Conselheiro dava ao seu povo em Canudos/BA, a partir de 1893, eram os mesmos do Padre Cícero Romão Batista dados aos romeiros do Juazeiro/CE desde 1872.

Entre os anos de 1925 a 1927, a Coluna Prestes, liderada por Luiz Carlos Prestes, avisou que destruiria Juazeiro porque, segundo ele, o padre Cícero havia transformado o lugar numa nova Canudos, destino de fanáticos religiosos e violentos. Qualquer semelhança com o passado de 1897 terá sido mera coincidência. Mas a Coluna fugiu do Nordeste sem passar por Juazeiro porque o padre convocou Lampião e seu bando, deu-lhes armas novas, munições e transformou o bandido em defensor-maior do sul do Ceará. O chefe maior do cangaço ainda treinou cerca de 300 adeptos do Padrinho Ciço para uma possível guerra (de guerrilhas) contra os tenentistas.

Ao final da leitura de “Veredicto em Canudos”, uma dúvida cruel pairará sobre a cabeça do curioso leitor: na Guerra de Canudos, qual o lado que representava a civilização e qual o lado que representava a barbárie? Mas justiça seja feita a Euclides da Cunha: no final do livro “Os Sertões”, ao falar da chacina, ele já não sabia mais quem era a civilização e quem era a barbárie. “Os Sertões” é um livro cheio de drama, vida e morte que se constitui na mais poderosa prosa escrita no território brasileiro e, sem dúvidas, uma das joias mais valiosas da língua portuguesa!

Eu firmei cada vez mais minha convicção burra de que as forças que estavam por trás do Exército brasileiro destruíram homens incultos e degolaram seus familiares com apoio (pasmem!) até da Santa Igreja Católica e Apostólica Romana pelo pecado de serem incultos e seguirem um líder religioso cristão. Que o verdadeiro lado da barbárie foi representado pelos vencedores fardados.

O massacre de Canudos será sempre uma mancha vergonhosa para o Brasil. Não adianta o governo federal ter construído o açude de Cocorobó, sobre as ruínas de Canudos, numa vã tentativa de diminuir o tamanho desse vexame nacional porque quando o Rio Vaza Barris seca, a colossal vergonha reaparece em cores mórbidas para ser vista por todos.

Não deixem de ler o livro desse húngaro que foi muito bem traduzido para o português. Ele entendeu melhor os brasileiros dos rincões nordestinos do que muitos de nós. Foi o melhor livro que li desde o começo deste novo século. E quando visitarem o sertão baiano, não deixem de ir a Euclides da Cunha, antigo Cumbe, que abrigou as tropas assassinas nas quatro expedições. Também não deixem de visitar a Nova Canudos e o açude Cocorobó.

Não termino sem o olhar do poeta Ivanildo Vilanova sobre aquela guerra estúpida:

Num profundo deserto sem ter fonte
Já surgiu um regime igualitário
Onde um justo já sexagenário
Fez erguer-se a cidade Belo Monte
Para então deslumbrar o horizonte
Sem maldade, sem crime e sem dinheiro
Sem bordel, sem fiscal, sem carcereiro
Mas foi morto e tomado por selvagem
A história fará sua homenagem
À figura de Antônio Conselheiro

Sertanejos morrendo de magote
A bandeira rasgada era um molambo
O quartel sem guarita era um mocambo
A trincheira era a grimpa de um serrote
A metralha um feioso clavinote
Baioneta era a lança do carreiro
A corneta o búzio do vaqueiro
Parapeito e gibão sua roupagem
A história fará sua homenagem
À figura de Antônio Conselheiro

Quase dez mil soldados de elite
Quatro bons generais lhes dando apoio
Bivaque, arsenal, boia e comboio
Com dezoito canhões e dinamite
Numa guerra civil sem ter limite
Não um simples conflito passageiro
Brasileiro matando brasileiro
Os vencidos mostrando mais linhagem
A história fará sua homenagem
À figura de Antônio Conselheiro.

Emoldurando o texto com música, trago “Nordeste Sangrento”, de Elias Soares, gravada por Luiz Gonzaga no desastroso ano de 1964. Há uma lição histórica numa frase da letra dessa música: “e a maldade dos homens nos obrigou a matar”.

A música tem tudo a ver com a REVOLTA DE JUAZEIRO, ocorrida em 1914, em que o Padre Cícero Romão Batista teve participação decisiva, armando camponeses e lutando contra o Poder Central. Mas não se pode comparar a “Sedição de Juazeiro”, como também é chamada, com o movimento messiânico de Canudos porque o padre teve o apoio das oligarquias dominantes e, além disso, o Exército brasileiro, estrategicamente, dele não participou em sentido contrário, isto é, em apoio às medidas do governo republicano causadoras da revolta. Diferentemente, Canudos não se rebelou, foi atacado e riscado do mapa brasileiro pelo Exército sem dó nem piedade. Juazeiro se revoltou, atacou e, no entanto, teve poucas baixas entre seus combatentes. A baixa maior foi a suspensão do sacerdócio que a Igreja Católica impôs ao padre sertanejo, hoje candidato a santo.

(Abílio Neto)

Texto – O Psicodelismo na vida de Zé Gonzaga – por Abílio Neto

No fim da década de 60, mais precisamente em 1967, o cantor, compositor e sanfoneiro Zé Gonzaga gravou um disco que deu muito o que falar: o álbum PSICODÉLICO.

PSICODÉLICO é também o título da principal música do LP. Mas por que houve tanta estranheza no mundo do forró?

1) Todo forrozeiro, inclusive seu irmão Luiz Gonzaga, detestava a Jovem Guarda com aquele órgão de Lafayette principalmente no ritmo do iê-iê-iê;

2) O título daquele LP e daquela música dava a entender que Zé Gonzaga a compôs em estado de alucinação mental produzido pelo efeito de alguma droga?

3) Estaria Zé Gonzaga querendo subverter o baião com aquele lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá impróprio, aquela letra então dita cafona e aquele teclado substituindo a sanfona?

Além disso, o cantor que ele convidou para cantar a música no seu disco não era um forrozeiro. Paulo Tito era um seresteiro. É verdade que pegava algum arrego no forró.

Absolutamente verdadeiro é que, na época que o disco saiu, em qualquer loja de disco que a gente chegasse como cliente conhecido, o vendedor logo perguntava: você já conhece o novo LP de Zé Gonzaga? E aí chamava a atenção para o nome do disco. E realmente era estranho!

Diante de tantas estranhezas dos consumidores de forró, o psicodelismo de Zé Gonzaga só durou cinco anos porque em 1972, aí sim, ele próprio gravou PSICODÉLICO, acompanhado da sua sanfona, mas fazendo uma alteração drástica no nome da música: passou para SONHO LINDO. E aí, sem querer, tirou toda a poesia e mistério que se escondia por baixo do antigo título.

Para mim, aquilo ali foi uma espécie de movimento contracultural de Zé Gonzaga porque ele continuou a produzir seus baiões românticos ou bregas até o fim da década de 60. No disco comentado há mais uns dois. Ele quis chamar a atenção de que a JOVEM GUARDA estava acabando com o forró. Esse é meu entendimento.

Tanto foi de ação de contracultura do baião seu gesto que, em 1986, o cantor Oseas Lopes, o Oseínha, do antigo Trio Mossoró, que virou cantor brega com o nome Carlos André, o regravou com o nome BAIÃO PSICODÉLICO e não como SONHO LINDO. E ainda teve a audácia de introduzir um nome como parceiro de Zé Gonzaga, com o fim, é claro, de ganhar direitos autorais. Aliás, o codinome que ele introduziu acabou dando fim ao mistério de quem seria o verdadeiro Zé Mocó, parceiro de tantos compositores no mundo do forró. Psicodélico sempre foi de autoria de Zé Gonzaga, sozinho. E fim de papo, não é, Oseínha!

Resumindo tudo: aquilo que Zé Gonzaga relutou em registrar como BAIÃO PSICODÉLICO, Carlos André escancarou de vez em 1986. E Zé Gonzaga fugia tanto disso, foi incomodado tanto por isso, que em 1972 o regravou editando no selo do LP que a música era um samba. Só que de samba não tem nada. Qualquer um percebe isso. Não é preciso ser músico para tal.

E assim caminha a Humanidade, cheia de contradições, mas por vários motivos o LP PSICODÉLICO, de Zé Gonzaga, tornou-se icônico na sua carreira, principalmente pela gravação exclusiva (até hoje) da música do seu irmão Luiz Gonzaga: o notável baião SENTIMENTAL, mas o disco continua sofrendo boicote inexplicável do maior site de divulgação de forró no Brasil: o FORRÓ EM VINIL. Eu lamento!

Não entendo a restrição porque até Carlos André com seu romantismo exagerado está lá, mas Zé Gonzaga, com esse disco comentado aí acima, não pode. Zé era conhecido por sua alegria e sua zoada. Foi esquecido até no seu centenário em 15/01/2021, mas não o será por ocasião da passagem dos 20 anos da sua morte. Então, descanse em paz, Zé, mesmo com uma zoada dessa! (Abílio Neto)